12/06/2016

Guerra e Paz - Liev Tolstói / Diário de Leitura #14

Em 2016, leio Guerra e Paz pela primeira vez e registro aqui um diário de leitura com postagens para cada uma das partes dos quatro tomos e epílogo.

Postagens:
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DL#16

Tomo 4 - Terceira Parte

   Pétia Rostóv encerra, nesta parte, a sua brevíssima passagem por Guerra e Paz. 

Na noite anterior ao falecimento do adolescente, o qual ocorrera durante um combate travado contra um comboio de franceses, o CÉU, símbolo recorrente na obra e que já aparecera para Andrei e Pierre, invade os pensamentos do pobre Pétia conforme trechos destacados acima. Curiosa, pesquei uns livrinhos de símbolos de que disponho, para averiguar o que teriam a dizer, e eis meu interessante achado (em tradução livre do inglês):
"Os grandes temas da morte e da ressurreição, respectivamente relacionados com os ciclos de involução (materialização progressiva) e evolução (espiritualização ou retorno ao ponto de origem), deram origem a muitos mitos e lendas. A luta para aprender a lidar com a verdade e o centro espiritual aparece sob a forma de batalhas e testes de força; enquanto aqueles instintos que acorrentam o Homem e levam-no à ruína surgem na forma de monstros. De acordo com Diel, os símbolos mais tipicamente relacionados ao espírito e à intuição são o sol e o céu ensolarado; enquanto aqueles relacionados à imaginação e ao lado mais sombrio da inconsciência, são a lua e a noite."
- A Dictionary of Symbols, J.E. Cirlot.

É principalmente para Andrei e Pierre, de fato, que essa questão da intuição e da epifania espiritual surge durante os marcantes momentos em que os dois são tomados pela contemplação hipnótica do céu. 

Outro devaneio que me consumiu enquanto lia a narrativa dos momentos finais de Pétia relaciona-se à seguinte ligeira inversão de um manjado adágio popular:

Tal pai, tal filho → Tal irmão, tal irmão  &  Tal irmã, tal irmão.

A narrativa dos comportamentos e atitudes do jovem Pétia Rostóv durante a batalha de 1812 espelha enormemente aquela que desfrutamos no ciclo de confrontos de 1805 com Nikolai Rostóv. Assim como o irmão mais velho do primeiro ciclo, Pétia aparece aqui como uma figura ingenuamente encantada pelos meandros da guerra, um adolescente afoito e de atitudes intempestivas que facilmente denunciam sua inocente inexperiência e contradizem  sua "empolgação, por ser agora um adulto." Não resta dúvida de que Nikolai Rostóv escapou com pouca folga do mesmo fim trágico.

Na leitura dos trechos relacionados à tentativa de fuga de Natacha com Anatole, confesso, não ocorreu-me a possibilidade de relacionar a conduta impulsiva e imprudente dela ao mesmo comportamento de Nikolai durante a guerra, mas com Pétia tal estalo veio mais facilmente. A natureza que moveu os três irmãos, naquelas respectivas ocasiões, é praticamente a mesma; cabendo apenas a ressalva de que as circunstâncias distintas refletem os diferentes papéis e realidades reservados naquela época ao homem e à mulher: o adolescente faz besteiras homéricas em guerras; a adolescente, em enredos matrimoniais.

Para finalizar, cabe citar a "crueldade" cometida por Tolstói contra o leitor por conta da maneira com que narrara, ainda que brevemente, os inocentes e pueris pensamentos, movimentos e condutas de Pétia antes do fim. A compaixão tocante com que o rapaz trata o jovem prisioneiro francês (conseguia enxergar-se nele) e o delicado diálogo com seu cavalo - "- Pois é, Karabákh, amanhã vamos ter trabalho - disse Pétia, cheirando e beijando as narinas do cavalo." (olha os cavalinhos novamente!) -, por exemplo, contribuíram ainda mais para intensificar o impacto doloroso provocado pela morte tão trágica do rapaz . A guerra trucidou sem dó a inocência de Pétia.

 Pierre, felizmente, foi resgatado pelo grupo de guerrilheiros comandado por Deníssov e Dólokhov. Ele prossegue sua jornada espiritual, a qual vai sendo conquistada a duras provações e, já que comecei falando de símbolos, cabe registrar que a narrativa dele vale-se de um outro que também é recorrente e que surge nessa parte: SONHOS. Com alguma frequência, Pierre (assim como Andrei) imerge em revelações oníricas espirituais sobre a verdade da VIDA e da MORTE. O sonho parece ser um simbolo que reserva a possibilidade de correlações amplas - citando algumas que localizei: premonição, profecia, meio de acesso ao inconsciente.

Uma questão vem me intrigando cada vez mais (e já a tinha citado em uma DL prévia): impressiona muito a similaridade das jornadas de Pierre e Andrei, quase reflexos uma da outra. Por exemplo, a verdade a respeito da vida que surge em sonho para Pierre nesta parte tem praticamente o mesmo teor daquela que contemplara Andrei em seus últimos momentos. E, como eu já havia citado em DL prévia, Pierre começa a entender a felicidade de um modo apenas ligeiramente adaptado em relação àquele compartilhado por Andrei. Sendo assim, algumas coisas escapam, por ora, da minha plena compreensão: 1. qual o motivo da presença de duas personagens que compartilham tantas similaridades (ainda que permaneçam diferentes) na mesma história?, 2. qual a distinção entre eles que fez com que Andrei ficasse no meio do caminho?  Pierre também morrerá na praia? E se ele não morrer, o que é que o torna especial em relação a Andrei e que garantirá sua salvação?

*ADENDO EM 14/01/2017: 
Estou lendo atualmente os Diários da Susan Sontag (Companhia das Letras, tradução de Rubens Figueiredo), e eis que ela aparece para me ajudar a melhor compreender essa relação Pierre x Andrei. Transcrevo, a seguir, a breve análise dela do livro:
"20/10/56
...Guerra e paz, de Tolstói
tema básico: sobrevivência de um épico anti-heroico
Kutúzov, o anti-herói em escala nacional, triunfa sobre o herói, Napoleão
Pierre, o anti-herói em escala individual, prevalece sobre o herói, Andrei
"
- Susan Sontag, Diários 1947-1963. 
Mas é claro! Muito obrigada, Sontag.


  Platon Karatáiev teve uma passagem ainda mais breve na história do que Pétia e também já não pode ser encontrado nas páginas do livro. Nos seus dias finais, ele deixa duas reflexões instigantes a respeito da, adivinhem? MORTE!
"Se a gente fica choramingando na doença, Deus não dá a morte." 
+
(sobre a personagem de uma história que ele contava aos colegas prisioneiros:)                      "Mas Deus já tinha perdoado... Ele tinha morrido."
Bom, então a morte seria uma dádiva divina concedida apenas àqueles que estivessem preparados para recebê-la. Será?


 Essa parte concentrou-se enormemente na narrativa das movimentações das tropas russas e francesas nesses momentos finais que, realmente, são bastante peculiares no universo das guerras. Vou aproveitar para imitar o querido Tolstói que, reparei, gosta de desenvolver suas argumentações utilizando a técnica do "~ primeiramente..., segundamente..., terceiramente..., quartamente... ~".

1. Os russos ~meio que~ não deram trela para as regras tácitas (?) da esgrima (usando a comparação da narrativa) e acabaram se dando bem. "O incêndio das cidades e das aldeias, o recuo depois das batalhas, o golpe infligido em Borodinó e seguido por uma nova retirada, o abandono e o incêndio de Moscou, a prisão dos saqueadores, a captura dos transportes, a guerra de guerrilhas - tudo isso desviava das regras."

Bom, suponho que fica uma lição para a vida: não aceite incontestadamente regras, e tenha em mente que uma transgressãozinha pode alçá-lo em altos voos (só não esqueça do risco da queda).

2. Aliás, a referida guerra de guerrilhas, nas palavas de Tolstói, foi uma das mais proveitosas transgressões das regras da guerra. É principalmente através dela, a qual consiste na ação dispersa de pessoas contra os aglomerados inimigos em massa, que o autor tenta explicar como um exército de dezenas de milhares conseguiu derrotar outro de centenas de milhares. A fórmula mágica da justificativa é esta:

FORÇA DAS TROPAS = MASSA x ÂNIMO DA TROPA.

Na hora do "vamos ver" (na teoria de Tolstói), um bom comandante ou maiores armamentos não seriam capazes de inverter sozinhos uma vantagem numérica, o que só seria possível com esse elemento mágico que a narrativa chama de "ânimo".

Suspeito de que, em tempos atuais de armas nucleares, tecnológicas e biológicas (com menos embate de solo), essa teoria do autor possa ser facilmente desconstruída (ainda que parcialmente).

3. Depois da batalha de Borodinó, não houve mais nenhum grande confronto entre as partes e, mesmo assim, o exército napoleônico foi se desintegrando gradativa e progressivamente à medida que recuava e batia em retirada da Rússia, sem que houvesse a concentração de esforços por parte da Rússia (como dito, o encalço russo foi diluído através de grupos de guerrilha).

Tolstói critica ferrenhamente a narrativa que os historiadores da época elaboraram a respeito da campanha de fuga dos franceses. Ele mostra-se indignado com as manobras adotadas por eles para justificar essa retirada, as quais focaram no engrandecimento dos comandantes, no enaltecimento de um Napoleão que, na verdade, "escapulia às pressas para casa, (...) deixando para trás, para perecer, não só seus camaradas como também pessoas levadas até lá por ele mesmo."

4. Finalmente, Tolstói discorre sobre as indagações que parecem ter tomado conta do país na época: por que as tropas russas não persistiram energicamente na perseguição dos franceses, a fim de aniquilarem toda a tropa e capturarem todos os comandantes, inclusive Napoleão? Aparentemente, essa falta de persistência foi tomada como uma vitória da França e derrota da Rússia. E a culpa sobrou para quem? Segundo os historiadores, para Kutúzov e outras pessoas isoladas.

Aqui, o tom de revolta que transparece no texto é enorme; revelando um narrador possesso com a desfaçatez historiográfica em afirmar a existência de um objetivo impossível e que nunca existira.  O que se pretendia, segundo o narrador, era liberar o país da presença dos invasores. Sendo assim, por qual razão deveriam os russos arriscar as vidas de mais centenas de pessoas no percalço de um invasor que já estava retirando-se por vontade própria? O país já estava em frangalhos, muitas pessoas morreram; portanto por que, e de que maneira, deveriam investir esforços na complicação logística e diplomática relacionada ao aprisionamento de comandantes franceses e de Bonaparte?

Duas marcantes observações ficam evidentes no último capítulo dessa parte em relação à crítica aos historiadores da época: 1. a metodologia deles é amplamente questionada - adoção de textos e documentos exclusivos dos grandes comandantes e lideranças, com aplicação de raciocínios elásticos e manipuladores que favoreciam interesses imediatos; 2. com grande impacto, Tolstói sugere claramente que a historiografia era conduzida por pessoas que não faziam absolutamente nenhuma ideia concreta do que efetivamente significa estar em uma guerra.

***
Realmente curiosa para saber como os historiadores de hoje encaram Guerra e Paz. Fica mais um tema para pesquisa ao término da leitura.

Pessoalmente, o livro acaba reforçando a importância de uma leitura crítica também das narrativas históricas.

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